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LGPD Após 3 Anos: Lições de Quem Está na Trincheira

LGPD Após 3 Anos: Lições de Quem Está na Trincheira

A Lei Geral de Proteção de Dados completou três anos de vigência. Como membro da Comissão Especial de Privacidade de Dados da OAB SP, certificado em GDPR, e consultor através da Trustness, tive a oportunidade de ver de perto o que funcionou e o que não funcionou nesses primeiros anos. Deixe-me compartilhar algumas lições práticas que aprendi na trincheira.

O Pânico Inicial

Lembro bem do caos que foi 2020 e 2021. Empresas desesperadas, consultores vendendo medo, confusão generalizada, investimentos erráticos. Muitas empresas gastaram fortunas em consultorias que prometiam "compliance total", softwares caros de gestão, advogados que vendiam terror. O resultado? Papelada bonita, mas prática questionável.

Foi um período interessante de observar. De um lado, empresas genuinamente preocupadas tentando fazer o certo. De outro, um mercado de compliance que se aproveitou do medo para vender soluções caras e muitas vezes desnecessárias.

O Que Realmente Importa

Após assessorar dezenas de empresas, de pequenas startups a grandes multinacionais, identifiquei alguns padrões claros sobre o que funciona e o que não funciona.

As empresas que se deram bem começaram com um mapeamento real, não teórico. Elas se fizeram perguntas simples mas fundamentais: que dados coletamos? Onde estão? Quem acessa? Por quanto tempo guardamos? Parece básico, mas cerca de 70% das empresas não fazem isso direito. Ficam no nível teórico, sem realmente entender o que acontece com os dados na prática.

Outro ponto crucial: essas empresas envolveram TI desde o início. LGPD não é só jurídico, é muito técnico. As melhores implementações que vi foram feitas por times multidisciplinares, onde jurídico, TI e negócio trabalham juntos. TI não apenas executa, participa das decisões. Controles técnicos são pensados desde o design, não adicionados depois como remendo.

E talvez o mais importante: essas empresas priorizaram práticas sobre papelada. Uma política linda não significa compliance. Empresas efetivas têm controles funcionando, não só documentados. Processos automatizados, treinamento contínuo, testes regulares. É a diferença entre ter um manual bonito e ter um sistema que realmente protege dados.

O Que Não Funciona

Por outro lado, vi empresas que sofreram. E o padrão é sempre o mesmo.

A pior frase possível é "já estamos compliant". LGPD é jornada, não destino. Ameaças evoluem, o negócio muda, práticas precisam se adaptar. Vi empresas que "completaram" LGPD em 2020 e pararam. Hoje, várias já estão inadequadas. Compliance não é um projeto com data de término, é uma cultura contínua.

Outro erro comum é tratar compliance como checkbox. "Precisamos de política de privacidade?" Copiam de um concorrente, publicam no site, pronto. Não é assim. Política de privacidade precisa refletir o que você realmente faz, não o que você gostaria de fazer ou o que seu concorrente faz.

E talvez o erro mais caro: terceirizar o pensamento. Consultores são úteis, mas não podem pensar por você. Vi empresas que pagaram valores altos em consultoria, receberam documentos genéricos, não entenderam nada, implementaram mal, e depois gastaram mais consertando. Consultoria deve te ensinar a pensar, não pensar por você.

Casos Reais

Deixe-me contar alguns casos reais, anonimizados, que ilustram bem essas diferenças.

Uma fintech pequena, com cerca de 30 funcionários e budget apertado, fez tudo certo. Fizeram um mapeamento completo em planilha Excel, identificaram cinco processos críticos, automatizaram três com scripts simples, documentaram os dois restantes, e estabeleceram treinamento trimestral de uma hora. O custo total foi baixo, usando recursos internos. Resultado? Compliance real, sem endividar a empresa. Prova de que não precisa gastar milhões para fazer certo.

No outro extremo, uma multinacional com milhares de funcionários e budget "ilimitado" fez tudo errado. Contrataram uma consultoria Big Four, gastaram milhões, geraram mais de 500 páginas de documentação, criaram 15 novos cargos de compliance, implementaram software enterprise com custo anual elevado. Resultado? Uma auditoria interna encontrou que 60% dos controles não funcionavam, dados sensíveis estavam em lugares desconhecidos, processos estavam documentados mas não seguidos, e o time de compliance estava atolado em burocracia. Dinheiro não compra compliance. Execução sim.

Outro caso interessante foi de um e-commerce que foi hackeado. Vazaram dados de cerca de 100 mil clientes, e a ANPD investigou. A diferença na resposta foi crucial. Uma empresa não tinha plano de resposta, entrou em pânico, tentou esconder, notificou tardiamente. Resultado: multa pesada. Outra empresa tinha um plano ativo em duas horas, notificou rapidamente, foi transparente, mitigou os danos. Resultado: advertência apenas. Preparação faz toda diferença.

Mitos e Realidades

Ao longo desses três anos, ouvi muitos mitos. Deixe-me desmistificar alguns.

"LGPD só afeta grandes empresas" é um mito perigoso. Toda empresa que processa dados pessoais está sujeita. O tamanho pode afetar a complexidade, mas não a obrigação.

"Basta ter política de privacidade" é outro mito. Precisa ter e seguir. Auditoria verifica prática, não papel. Ter uma política bonita que não reflete a realidade é pior que não ter política.

"Posso usar consentimento para tudo" também não é verdade. Consentimento é uma base legal, mas muitas vezes não é a melhor. Existem outras bases legais que podem ser mais apropriadas dependendo do caso.

"LGPD matou marketing digital" é exagero. Adaptou, sim. Mas quem faz certo continua fazendo marketing efetivo. Só precisa fazer de forma mais consciente e respeitosa.

E talvez o mito mais perigoso: "após implementar, está feito". Manutenção contínua é essencial. LGPD não é um projeto, é uma cultura.

Um Guia Prático

Se você está começando agora, especialmente se for uma PME, deixe-me compartilhar um caminho prático.

Na fase de entendimento, que pode levar de duas a quatro semanas, comece mapeando seus dados. Que dados você coleta? De quem? Para quê? Por quanto tempo? Depois, identifique riscos. Você lida com dados sensíveis? Tem terceiros envolvidos? Faz transferências internacionais? Já teve incidentes? Por fim, avalie o gap. O que a LGPD exige? O que você já faz? O que falta?

Na fase de implementação, que pode levar de dois a seis meses, priorize. Riscos críticos primeiro, quick wins depois, nice-to-have por último. Controles essenciais incluem política de privacidade clara e acessível, procedimento de exercício de direitos, gestão de consentimentos onde aplicável, segurança da informação básica, plano de resposta a incidentes, e contratos com terceiros. Mas você não precisa necessariamente de DPO obrigatório, software enterprise caro, time gigante de compliance, ou consultoria Big Four. Depende do seu caso.

Na fase de manutenção, que é contínua, estabeleça rotinas. Mensalmente, revise novos processos e sistemas, treine novos colaboradores, verifique exercícios de direitos. Trimestralmente, faça auditoria de controles, atualize documentação, revise incidentes. Anualmente, faça revisão completa de práticas, treinamento geral, e atualização regulatória.

Ferramentas que Funcionam

Para mapeamento, planilhas funcionam. Sério. Não precisa de software caro para começar. Lucidchart ou Draw.io são úteis para fluxos, Notion ou Confluence para documentação.

Para gestão de consentimentos, existem opções enterprise como OneTrust e TrustArc, opções para PME como Iubenda e Osano, ou você pode desenvolver algo custom se tiver um desenvolvedor competente.

Para segurança, use os controles existentes de infosec. LGPD não reinventa segurança, apenas amplifica a necessidade. Se você já tem controles de segurança da informação, está no caminho certo.

Para treinamento, microlearning funciona melhor que cursos longos. Dez minutos mensais são mais efetivos que um curso de quatro horas uma vez por ano. Simulações práticas e casos reais anonimizados também funcionam muito bem.

Como a ANPD Tem Agido

A ANPD tem sido educativa mas firme. O padrão que observei é claro: primeiro incidente geralmente resulta em advertência com prazo para corrigir. Reincidência resulta em multa, geralmente uma porcentagem do faturamento. Má-fé ou gravidade extrema resulta em multa máxima.

Mas há uma diferença importante: empresa que demonstra esforço genuíno recebe tratamento diferente. Empresa que ignorou completamente recebe rigor maior. A ANPD valoriza boa-fé e esforço real de compliance.

Perspectiva Internacional

Como certificado em GDPR e tendo trabalhado com empresas globais, posso comparar. Há semelhanças nos princípios fundamentais, direitos dos titulares, e obrigações de controladores. Mas há diferenças importantes: GDPR é mais maduro, com enforcement mais agressivo. ANPD ainda está construindo jurisprudência. Brasil tem sido mais pragmático que a Europa. E as multas no Brasil são menores, por enquanto.

O Que Esperar

Nos próximos três anos, prevejo algumas tendências. Enforcement vai aumentar, a ANPD está ganhando músculo e multas maiores virão. Jurisprudência vai se consolidar, casos práticos vão definir as áreas cinzas. Tecnologia vai evoluir, privacy-enhancing technologies vão se tornar padrão. Consumidores vão ficar mais conscientes, a geração atual valoriza privacidade e a pressão de mercado vai aumentar. E vamos ver integração regional, a América Latina está caminhando para harmonização, como a União Europeia fez.

Conselhos Práticos

Para startups e PMEs, comece simples. Faça o básico bem. Evolua conforme cresce. Não precisa de tudo de uma vez.

Para empresas médias, invista em processos, não só ferramentas. DPO pode ser terceirizado se necessário. Foque em construir cultura de compliance.

Para grandes empresas, construa governança madura. Integre compliance com operações, não como departamento isolado. Compliance deve fazer parte do negócio, não ser um obstáculo.

Para profissionais, LGPD é uma carreira. Se você entende dados, tecnologia e regulação, o mercado é seu. Há muita demanda e pouca oferta de profissionais realmente qualificados.

Reflexão Final

Três anos depois, LGPD saiu de pânico para rotina. Empresas que trataram como checklist sofreram. Empresas que enxergaram como cultura prosperaram.

Como profissional da OAB e consultor, minha mensagem é simples: LGPD não é inimiga. É um framework para fazer certo o que sempre deveria ter sido feito: respeitar dados das pessoas.

A implementação pode ser simples ou complexa, depende de você. Mas não fazer não é opção. E fazer certo não precisa custar uma fortuna. Precisa de comprometimento, entendimento, e execução consistente.


Dúvidas sobre LGPD? Precisa de orientação prática (não venda de medo)?

Conecte no LinkedIn - sempre feliz em ajudar empresas a navegar compliance de forma realista.


Ricardo Esper é membro da Comissão Especial de Privacidade de Dados da OAB SP, certificado em GDPR, CCISO, e CEO da Trustness. Não vende medo, vende pragmatismo.